Thursday, 17 January 2008

Do sofrimento (de não conhecer)...

"Penso: Talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso caia em cima de uns e pouco ou nada em cima de outros. Não a dor, não as pernas trôpegas de nódoas negras, não as costelas partidas a colar entre o sangue pisado, não a cabeça a rachar-se em tentáculos como raios, não a pele das paixões acabadas a abrir rasgões fundos na carne como vergastadas de uma impotência absoluta; mas o sofrimento, permanente e constante, como todos os ossos expostos a furar os músculos e a pele.Dói-me o corpo e é sem o sentir que sofro.(...)
Sei que a minha mulher vagueia pela casa. Vagueia pela casa e não sei o que pensa.Não a conheço. Como se apenas a visse e fosse sempre a primeira vez. Sem a ouvir, sem a sentir, olhando-lhe os movimentos sem história e nunca lhe entendendo as razões. Muitas vezes me fixei na sua testa de menina, no seu olhar intenso, mas nunca pude atravessar as suas paredes, sem portas ou janelas no sentido, nunca pude caminhar nas suas salas e alumiá-las com um candeeiro, por muito sumido, por muito fosco. Sei dela tanto quanto no dia em que me dispus a conhecê-la".

José Luís Peixoto, "Nenhum Olhar".

2 comments:

Jaime said...

Com o tempo (e eu já cá ando há algum...) descobrimos que na verdade nunca se conhece totalmente, podemos ter vislumbres de certos aspectos, mas sempre limitados, e isso não é bom nem mau: é a vida e o que fazemos dela...

Marlene said...

Pode-se dizer que as pessoas são como as cassetes de música: tem o lado A e o lado B (não é uma comparação lá muito...mas continuando o raciocínio...). O lado casa e o lado rua. E se já é difícil conhecer um, o que fará dois?
E quando há momentos em que eles se unem,reflectindo quase o total do que somos,então aí, é o desconhecimento total!
Nós somos um bicho raro, que tem muito que se lhe diga... e estranho, complexo...
Temos mais vértices que um prisma, ou então somos um.A luz passa por nós, e então reflectimos várias cores(que confundem)...que se voltam a unir numa única cor - pessoa.

Beijos