O dia começou com uma lentidão cheia de preguiça natalícia corpo quente desenrolado devagar devagarinho dos cobertores, contrasta com o frio que se faz sentir.
É noite de Natal, é noite em família.
Seria diferente. Mãos na massa, na farinha, farinha no nariz, no nariz da mãe, no do tio, no do primo. Fiz um camarão salteado, com umas quantas malaguetas, para aquecer o pessoal e os seus corações, para que estes se dilatassem.
A noite ia longa. Típicos jogos em família: cartas ou cartas. Não, desta vez será Bingo. A dinheiro? Não. A passas, a figos e o prémio final (som dos tambores)...Rabaaaaaaaaaaanadas!
Uma família à porfia por umas rabanadas.
Quis cantar os números. Tal e qual as meninas do sorteio do totoloto ou totobola. No que eu me fui meter! Lá comecei a medo...não tenho jeito. Comecei a dizer umas piadas pelo meio, brincando com os números e as suas simbologias. Assim ninguém adormeceu.
Passei o meu testemunho a outro, que entre um copo de champanhe e um copo de vinho, aquecia a voz e gritava sufocado os números. Afinal não é assim tão fácil dar à manivela, não é?
Na sala, finalmente, eu, as luzes da árvore de natal e a estante dos livros. Comecei a deslizar os dedos pelas suas capas, até os meus olhos repousarem sobre uma capa verde, que ficava ainda mais verde, com aquelas luzes intermitentes. Peguei nele. Sentei-me. Tinha como título...
Figo! Fiz um figo! Uma linha. Já era o segundo. Não os comia. Juntava-os.
"Ponto pé de Flor". Abri-o numa página à sorte e deparei-me com esta frase:
Bingo! Bingo! Passa para cá a rabanada! Ganhei! Eu ganhei! Uma rabanada.
"Para onde tu fores os cacos vão contigo".Não adiantava sair da cozinha para a sala, ou da sala para a cozinha. Não adianta fugir para outro lugar. Está tudo dentro de nós.
Acabou a noite de Natal. Dormi muito mais quente. Acordei muito mais leve. É como sair de uma outra realidade, um outro espaço cheio de afecto. Tudo é bom. Sentimo-nos a flutuar. É um espaço sem tempo.
Mas, já regressei. Estou de novo na minha realidade. No meu espaço. No meu quarto.Com os meus cacos.